sábado, 21 de junho de 2014

 "Indivíduos dedicam-se tanto mais ao crime quanto menores são suas perspectivas de sucesso em atividades lícitas e quanto maiores os benefícios líquidos esperados da atividade ilícita." 




Raízes da corrupção


Rubem de Freitas Novaes, O Estado de S. Paulo, 09/07/05
Gary Becker, professor da Universidade de Chicago, ganhou o Prêmio Nobel em 1992 por demonstrar, ao longo de sua obra, que a Teoria Econômica é, na verdade, uma Teoria da Escolha, prestando-se à análise de qualquer tomada de decisão em qualquer área do conhecimento humano. Um de seus excelentes artigos, Crime e castigo , mostra justamente que a opção pelo crime depende de uma análise racional de custos e benefícios associados às atividades delituosas.
Sintetizando a argumentação de Becker, indivíduos dedicam-se tanto mais ao crime quanto menores são suas perspectivas de sucesso em atividades lícitas e quanto maiores os benefícios líquidos esperados da atividade ilícita. Estes benefícios líquidos, por sua vez, dependem dos ganhos a serem extraídos do crime, do tamanho das penas e da probabilidade de condenação. Desconfortos de ordem moral e a possibilidade de danos à imagem seriam fatores a ser considerados do lado dos custos, porém insuficientes para, sozinhos, determinar o comportamento de grande parte da população.
Outro brilhante professor, Milton Friedman, também detentor do Prêmio Nobel de Economia, seguidamente nos chama a atenção, em seus escritos e palestras, para a importância do “olho do dono” fiscalizando as transações financeiras.
Segundo Friedman, a atividade governamental é fundamentalmente ineficaz por arrecadar recursos de terceiros para o benefício de terceiros, quando não para o benefício próprio de burocratas e políticos. As transações nos mercados privados, por sua vez, seriam mais eficientes e “limpas”, por serem observadas atentamente por quem tem o efetivo interesse nos custos e nos benefícios dos negócios realizados.
Voltando à análise de Becker, para que a corrupção em larga escala prospere ela precisa de um ambiente apropriado, gerador de múltiplas perspectivas de ganhos para os criminosos. Segundo a sabedoria popular, “a ocasião faz o ladrão”. Pois bem, quem faz esta ocasião é a massa enorme de dinheiro descuidadamente administrada e movimentada a centenas de quilômetros do cidadão contribuinte.
Infelizmente, em nosso país a ingerência estatal atinge proporções descabidas. É verdade que em termos de intervenção indireta na economia já vivemos dias piores. No governo Geisel, por exemplo, auge do dirigismo econômico, quase todos os setores dispunham de órgãos próprios de planejamento e controle e ao Estado, em cada caso, se atribuía o direito de premiar ou punir empresas, segundo estivessem ou não enquadradas nas prioridades do “planejamento estratégico”.
Em boa parte esta estrutura burocrática foi sendo desmontada, mas em seu lugar evoluíram as despesas diretas dos governos, sustentadas por expressiva elevação da carga tributária e do endividamento público.
Hoje há menos dirigismo econômico e mais paternalismo social; menos incentivos ou punições e maior distribuição de benesses ou esmolas, sem que resultados substantivos apareçam na atenuação da pobreza; e menos “planejadores”, categoria substituída por um número muito maior de agentes sociais e policiais a lutar, em vão, contra os efeitos perversos de uma economia há tempos estagnada pela própria ação do governo.
Neste nosso país, que alguns ainda têm o desplante de chamar de neoliberal, se somarmos aos orçamentos públicos (cerca de 40% do PIB) os orçamentos das empresas públicas (Petrobras, Correios, IRB, Furnas, etc.) e das agências oficiais de crédito (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, etc.), atingimos certamente valor muito superior à metade do PIB sob domínio estatal.
A questão se agrava quando consideramos a estrutura centralizada de arrecadação e dispêndio dos recursos públicos. Em total desrespeito a princípios federativos, parcela substantiva dos impostos arrecadados tem de passar por Brasília e só retorna às origens após vergonhosa mendicância de governadores, prefeitos e políticos em geral.
Com os olhos distantes de tudo, a população não tem condições de seguir os caminhos ou descaminhos desses recursos, nem de atribuir e cobrar responsabilidades específicas de seus representantes.
É certo que uma boa reforma política e um combate ao festival de nomeações para empregos públicos são fatores que podem contribuir para reduzir a corrupção. Mas reformas políticas devem mirar o interesse do eleitor, e não o de políticos já estabelecidos ou o de partidos.
Da mesma forma, a redução dos cargos de indicação política deve ser balanceada para que não caiamos em outro tipo de problema grave: a ditadura de uma burocracia permanente que não pode ter seus interesses, muitas vezes estatizantes e corporativistas, colocados acima da vontade da população votante.
Não deveríamos ficar surpreendidos com a sucessão de fatos que nos expõem aspectos tão negativos da natureza humana. Contra estes aspectos estaremos sempre indefesos enquanto o governo for pesado e gorduroso; enquanto as regras do jogo forem complexas e arbitradas discricionariamente; enquanto não forem respeitados princípios federativos que recomendam que a ação estatal, principalmente a de caráter social, deve ser exercida tão perto quanto possível do público-alvo e do cidadão contribuinte; enquanto for conferido a burocratas o poder de vida ou morte sobre empresas; e, finalmente, enquanto a morosidade do aparato policial e judiciário permitir impunidade em larga escala.
Estejamos certos de que a corrupção, não obstante o valor dos princípios morais, é função precípua do tamanho e da organização do Estado. Para que a combatamos com êxito temos de ir a suas raízes profundas: o monstro estatal obeso e burocratizado.
Rubem de Freitas Novaes, economista (UFRJ) com doutorado na Universidade de Chicago, foi presidente do Sebrae e diretor do BNDES. E-mail: rfnovaes@uol.com.br


sábado, 7 de junho de 2014




"Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o demônio". (Mia Couto)
Existem inevitáveis duelos dentro de nós. A disputa metafórica entre luzes e sombra se mostra para além dos nossos olhos e para dentro do nosso espírito, repetindo-se como um tema que ao longo do tempo versamos e sentimos, nas escolhas e estados interiores, em maior ou menor grau, que nos impulsionam ou paralisam. Na guerra travada entre anjos e demônios, habitamos seus personagens ao mesmo tempo que eles nos habitam, ditando-nos à ação ou omissão. Os duelos se evidenciam nas dúvidas que nos corroem, visto que as dimensões e tendências contrárias se tensionam silenciosamente. Por exemplo: dar moedas a um pedinte, emprestar ou não dinheiro a alguém que se conheça, procurar antiga e afastada paixão, poupar-se em casa ou gastar-se num evento, comer algo que não deveria, cumprimentar alguém que não se gosta, etc. são exemplos a definir aquilo que na vida nos define ininterruptamente. O homem não é absoluto, pois carrega tanto o bem quanto o mal. Suas ações e omissões demonstram e permitem tais alternâncias, conforme os escuros e claridades que atravessamos de acordo com as conveniências da virtude e os interesses do egoísmo. Não se despede do que não se escolhe, pois na próxima ocasião em que se peça um pouco de nós, daremos espaço para uma destas vozes e representações. Prudente o homem que olha o fruto e vê a semente, olha a semente e sabe do outono. Se sabedor o homem das suas inexatas forças e extensões, saberia também a medida da palavra quando veneno ou remédio, mas eis que somos forasteiros das nossas profundezas, negando o que nos incomoda e o que nos inteiro confessa. Vivemos num perpétuo duelo entre as nossas expressões, sofrendo por dedicarmos demasiada atenção ao que não queremos ser. A energia gasta na negação poderia ser usada na aceitação de si, para os remendos e consertos necessários a serem realizados em nossa personalidade, diminuindo ou aumentando a influência da luz ou das sombras, conforme as conveniências do que seja melhor para nós.